Quando a Mãe Sombria despoja do bem maior: a liberdade – uma reflexão sobre mulheres em situação de prisão

Por Sonia Lucinda Modena

 

Durante muitos anos de minha vida trabalhei com pessoas em situação de vulnerabilidade. Ainda na faculdade de psicologia, em dois estágios curriculares, pude estudar e acompanhar a população privada de liberdade no sistema prisional do Rio Grande do Sul. Anos após prestei concurso público e em 2000 ingressei na Secretaria de Segurança Publica onde desempenhei a função de Monitora Penitenciária, posteriormente designada Técnica Penitenciária Superior.

Durante 15 anos, acompanhei, avaliei, atendi individualmente e em grupo, homens e mulheres encarcerados. Mas o trabalho com as mulheres, foi marcante em alguns estabelecimentos e unidades femininas. Ser psicóloga humanista e transpessoal, fazer parte das tendas e clãs do sul (8ª e 9ª geração) me trouxe um olhar e uma atitude diferenciada no meu trabalho com estas mulheres, tanto nos atendimentos diretos como na gestão em saúde prisional e assessoria de direitos humanos. Atualmente aposentada, fui convidada a escrever um pouco da minha experiência, um novo desafio que honro e teço com amor para vocês.

No sistema Prisional do Rio Grande do Sul, segundo o Departamento de Segurança e Execução Penal (DESEP) da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE), em 21 de fevereiro, encontram-se, atualmente, 39.096 pessoas privadas de liberdade, dentre as quais 2.112 são mulheres. De acordo com a pesquisadora Adriana Prass[1], o perfil destas mulheres envolve minorias étnicas, baixo grau de escolarização, classe social marginalizada e economicamente desfavorecida. Um outro fator agravante deste quadro é o fato que essas mulheres são mais propensas a se tornarem mães solteiras, geralmente com responsabilidade exclusiva pelo lar, e a se exporem a relações familiares negligentes e com pais ausentes ou encarcerados. Destas mulheres, 58,3% são reincidentes no delito, estando, a maioria delas, envolvida direta ou indiretamente com o tráfico de drogas.

Durante a anamnese, em atendimentos feitos pela equipe de psicólogos da qual fiz parte por 15 anos, são ouvidos diversos relatos, e o aspecto mais recorrente tem sido a violência sofrida desde meninas, seja pelos próprios pais ou cuidadores, e ou namorados, companheiros, maridos. Na maioria dos casos, é justamente dessa violência que decorre o ingresso dessas mulheres nas prisões.

Com a figura masculina encarcerada, o homem que mantinha a família através do dinheiro do tráfico ou relacionado a este, muitas mulheres, por falta de alternativa, passam a assumir a tal atividade. Nos dias de visita, são obrigadas a conduzir, no interior de suas vaginas, algum tipo de material ilícito, tais como armas, drogas, celulares etc, acarretando, invariavelmente, flagrante delito. Privadas de liberdade, seus filhos ficam, literalmente, sem pai nem mãe ou aos cuidados de algum membro da família ou em abrigos.

Vocês já observaram a fila de visitas numa unidade prisional masculina? São muitas mulheres! Irmãs, amigas, esposas, filhas, mães, avós carregando sacolas com alimento, roupas, e diversos outros utensílios para a “melhor estada” do homem preso. As mulheres são ligadas a eles por intermédio de uma credencial, uma “carteirinha”. Acaso o homem não queira mais recebê-la, sua entrada será vetada, ele faz a “desliga” e “liga” outra (reparem a expressão utilizada pela instituição penal – “ligar e desligar” a mulher).

Já numa fila de visita à penitenciária feminina, são raros os homens, há algumas mães, amigas, irmãs ou filhas, ainda assim a situação é de grande abandono. Como na vida extra muros, a mesma discriminação com o feminino se reproduz. A mulher privada de liberdade, muitas vezes é punida mais de uma vez: pela justiça e pela a sociedade e meio onde vive!

Os espaços, os ambientes carcerários que lhes são destinados são precários e lotados. Muitas vezes, até em penitenciárias construídas para o público masculino. E, onde já são desrespeitadas as mínimas condições de convivência, devido à superlotação, mais uma vez, as mulheres são violadas em seus direitos!

Somam-se ao aprisionamento de seus corpos físicos todas as questões emocionais, principalmente a perda de autoestima, já que muitas delas possuíam, no local onde moravam, certo “status” e, agora, veem-se na condição de ser apenas mais uma mulher na “massa carcerária”. Submetidas à violência, por não terem ou não saberem o quanto podem decidir seus destinos, não conseguem se empoderar e ver-se como sujeitos do direito de escolha de uma vida diferente. Há muitos níveis de prisão interna a superar, faltam-lhe as forças para isso e, até mesmo, para vislumbrar saídas.

Analisando tais aspectos, venho, já há algum tempo, refletindo sobre a semelhança comportamental dessas mulheres com a figura de Eco do mito de Narciso. Tal como a ninfa, elas falaram e não foram ouvidas, não conseguiram seu espaço de voz, de fala! Só puderam reproduzir o que eles sempre falavam e pensavam. Frente a isso, se recolheram (ou foram recolhidas) e devido à rejeição se paralizaram/cristalizaram virando cavernas estáticas, sem encontrar outra saída.

Ou seriam “Perséfones” enclausuradas? Provaram da romã por amor ou dependência destes homens que passam a ter uma importância superestimada em suas vidas, acabam por tornarem-se suas rainhas! A violência que sempre as acompanhou é banalizada e por isso “escolhem” ir ao “mundo dos mortos” (presídios), mas com a possibilidade de liberdade. Quantas dessas Perséfones conseguem reconhecer seu aspecto sombrio e abraçar sua sombra?

Ou, quem sabe ainda, Sedna, a regente Inuit das profundezas do mar, esteja presente na história destas mulheres que se encantaram por promessas de uma vida faustuosa, mas se decepcionam com a realidade em que tais promessas se tornam. “Sedna[2] nos ensina que podemos sobreviver às tragédias e nos transformar, mesmo passando por desafios, perdas, sofrimentos, injustiças e desgraças.” Este arquétipo nos mostra o quanto é necessário deixarmos de ser vítimas, a importância de reconhecer como se está vivendo a vitimização, para, posteriormente, poder mudar este padrão comportamental através do empoderamento e fortalecimento pessoal.

Em meu efetivo trabalho planetário com todas as mulheres, e em meu exercício profissional de psicologia, observo e busco entender o aprisionamento feminino. De que forma estas mulheres se colocam no mundo? Como se veem? A Mãe Sombria lhes despojou do bem maior: a liberdade para que pudessem integrar luz e sombra durante o período de reclusão. “Conhecer melhor as trajetórias de vida e os fatores associados ao encarceramento feminino poderá fornecer insights sobre as motivações, responsabilidades e necessidades pontuais de reabilitação de mulheres encarceradas” (DOTTA-PANICHI, 2014[3]).

Cada uma de nós tem muito de cada uma dessas mulheres em situação concreta de prisão – luz e sombra, amor e ódio, alegria e tristeza, sonhos e pesadelos… Tal como já escreveu nossa sábia irmã, Zuleika Centeno Stone Jardim, em sua publicação denominada Luz e Sombra, o resultado é emergir das sombras renovado, com um senso de plenitude e de reverência ao sagrado que nada nem ninguém pode tirar.

Desejo, profundamente, que elas encontrem e resgatem este sagrado feminino que permanece latente no interior de cada uma. Quanto às prisões, espaços áridos e cinzas que não modificam nem acrescentam, apenas punem, creio, num tempo futuro melhor. A fé, o amor e o desejo são nossas maiores forças!

 

“Tempo virá.
Uma vacina preventiva de erros e violência se fará.
As prisões se transformarão em escolas e oficinas.
E os homens imunizados contra o crime, cidadãos de um novo mundo,
contarão às crianças do futuro estórias absurdas
de prisões, celas, altos muros, de um tempo superado. »

Cora Coralina

 

[1] PRASS, Adriana. IV Salão de Iniciação Científica da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público – FMP 2014. “Saúde Pública e Sistema Prisional: novos olhares na produção de direitos à saúde a mulheres privadas de liberdade”.

[2] FAUR, Mirella. As Faces Escuras da Grande Mãe – Como usar o poder da sombra na cura da mulher . Lua Negra . Asteróides . São Paulo: Editora Alfabeto, 2016.

[3] DOTTA-PANICHI, Renata Maria. The right to health: women in prison and mental health. Tese de Doutorado. UFCSPA, 2014.