04 jan Luz e Sombra
Por Zuleika Centeno Stone Jardim
Em tempos muito remotos, os homens viveram totalmente integrados à natureza e seus ciclos, que viam como a manifestação de uma única divindade – a Grande Mãe. Deusa de caráter ambivalente, não só era fecunda e protetora, doadora de fertilidade e abundância, como também capaz de destruir e matar com força implacável. Assim, reverenciavam luz e sombra como aspectos inseparáveis dessa poderosa entidade divina, criando ritos iniciáticos baseados na perspectiva de renovação, pois esta era uma constante em tudo que observavam, como a alternância dos dias e das noites, das lunações e das estações do ano. A percepção da realidade tinha, portanto, a marca da totalidade.
Mesmo em épocas posteriores, quando as qualidades da Grande Mãe se fragmentaram e foram atribuídas a deusas diversas, aquelas que se relacionavam com a escuridão não eram vistas como a encarnação do mal em termos absolutos. Muitas podiam ser invocadas para afastar os espíritos maléficos, uma vez que tinham domínio sobre eles; para proteger as almas das crianças até que estivessem prontas para nascer; ou para proporcionar algum tipo de regeneração através de sua magia.
Assim, mesmo após já se ter iniciado o avanço do princípio arquetípico masculino sobre a consciência e cultura dos povos, a noção de realidade fundamentada na existência de opostos separados e inconciliáveis ainda não estava firmemente estabelecida.
A mudança de padrão – da totalidade para a dualidade – só se fixa a partir do momento em que se constata o forte predomínio daquele princípio masculino, quando, então, o Logos (espírito, mente, razão) ganha supremacia sobre Eros (corpo, matéria, natureza, feminino). Levando à crença na separatividade, luz e sombra não podem mais coexistir nem ter o mesmo valor. Uma é boa e desejável; a outra, má e perigosa.
Desde então, os seres humanos vêm caminhando cada vez mais desconectados dos ciclos naturais, procurando proteger-se de tudo que lembra a contraparte escura em si mesmos e no mundo exterior, acreditando poder mantê-la a distância com o auxílio de mecanismos racionais de controle.
Hoje, vivemos num mundo em que se observam comportamentos de negação e de fuga à dor, à tristeza, à velhice, à finitude, ao silêncio, ao vazio que pede a espera do não-agir, à morte.
Entretanto, a Mãe Sombria sempre nos alcança em algum momento, e nos despoja de algo valioso: a perda da fonte de segurança financeira, a separação de quem amamos, alguma doença grave impondo pesados sacrifícios, limitações físicas ou de outra ordem que passam a nos impedir de fazer o que dava sentido à vida, não importa. Seja qual for a forma como se apresenta a experiência, aí tem início a travessia pela noite escura da alma.
Rendição, aceitação, entrega são as chaves para vencer os desafios dessa jornada iniciática de transformação, que requer, simbolicamente, a descida ao mundo inferior onde reinam os deuses guardiões dos mortos, pois sempre implica vivenciar algum tipo de final irreversível. Angústia ante o desconhecido e sensação de impotência nos acompanham nesse processo, enquanto buscamos o propósito daquilo que somos forçados a enfrentar.
Astrologicamente, os trânsitos de Plutão pelos planetas pessoais no mapa natal (principalmente pelo Sol, Lua ou regente do Ascendente), formando os aspectos tensos da conjunção, quadratura ou oposição, costumam sinalizar esses tempos de colapso do que nos serve de apoio e referência, e nos vemos reduzidos à nossa essência.
Entretanto, para quem aceita e se entrega ao doloroso processo de transmutação, Plutão – o senhor das riquezas ocultas – reserva o acesso a fontes de sabedoria e de potenciais insuspeitados. O resultado é emergir das sombras renovado, com um senso de plenitude e de reverência ao sagrado que nada nem ninguém pode tirar.
Em termos coletivos, vivemos a travessia pelo vale das sombras nos tempos atuais, marcando a transição para outro estágio evolutivo. Podemos esperar que a figura arquetípica do Destruidor nos esteja forçando, como humanidade, a abrir espaço para uma nova forma de organização social voltada para a integração dos opostos.
Os sinais nesse sentido estão cada vez mais firmes, podendo-se observar o crescimento da valorização de uma concepção de mundo holística, que se difunde e vem permeando pouco a pouco todas as áreas da atividade humana.
Lembremos que, sincronicamente, Plutão foi descoberto em 1930, quando transitava pelo signo de Câncer, o signo lunar da Grande Mãe. Nesse contexto, parece que seu surgimento teve o propósito de preparar-nos para a totalidade que ela simboliza, fazendo-nos trilhar o caminho rumo à inteireza. Difícil, penoso sem dúvida, com nossos medos mais profundos e inconscientes gerando e alimentando poderosas forças de resistência ao crescimento, enquanto nossa fé vai constelando os meios para que a abertura se faça. Só há uma certeza: o caminho é sem volta.